terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Amor debaixo do sol

Ele escreve num caderno de anotações desfolhado: TRISTEZA. Depois, numa sala vazia e empoeirada, o personagem do grande Paulo José nos brinda com esta fala:

"Silêncio, por favor! posso ter sua atenção?... Tris-te-za. É triste que a tristeza seja o tema da nossa conversa. Os pássaros cantam, o solo esconde o frio da nossa bela cidade. Mas eu não estou aqui para falar sobre a cidade, eu estou aqui para falar sobre... o amor! Eu espero que vocês que ouvem esta minha paixão, a qual eu dediquei toda a minha vida, todos esses anos... Deixe-me ser claro... e obscuro. Guardem suas perguntas, confiem no mistério."

Assim, somos apresentados a Insolação (2009), filme de Felipe Hirsch e Daniela Thomas. Baseado em contos da literatura russa (mais uma prova de que a literarura é universal), conta a história de pessoas em busca de amor, seus encontros e desencontros, mas, sobretudo, sobre o desamparo que paira como um delírio coletivo. Urge, porém é sofrível, efêmero, ocasional o amor que procuram.

Tudo é apresentado em tom poético, expressando uma beleza melancólica e tocante, cujo efeito é bem raro no cinema nacional tão apegado a comédias nos últimos anos. Os personagens são solitários tanto de amor quanto de si próprios e isto é realçado pela Brasília desértica, pelo ambiente de total desterro, pela trilha sonora perspicaz e uma direção de fotografia que consegue captar o vazio dos personagens.

Deste modo, a tristeza permeia todas as ações, inclusive quando algum vestígio de amor é encontrado, logo se percebe pouco, logo se torna "alguém que conheci e depois esqueci". Delírio, calor. Sim, há sol e calor além do contento. Insolação. São seres perdidos num deserto querendo se encontrarem. Mesmo que para se machucarem, se matarem, sentir falta e, com sorte, se amarem.

Numa das cenas mais impactantes, a irmã do menino Wladimir (dos poucos personagens nomeados) fala algo que retrata bem a questão: "Eu costumava pensar que era possível encontrar alguém. Sou idiota?", no seguimento, o psicólogo a encoraja, diz que "Não". Em contraste, o pai da moça, o médico, é duro com o filho: "Meu filho, guarda-te bem do amor, teme essa felicidade". É como se andassem em círculos em intervalos de tempo incompatíveis. Nas palavras do professor (chamemos assim), eles se movem porque "o amor não foi feito para sermos felizes, mas para nos sentirmos vivos", numa busca constante.

Por isso a vingança do louco que porta uma faca é inútil quando o coletor de cerejas o encontra sem nada a perder. Só depois de encontrar uma mulher nas sombras, que nem ele sabe quem é, mas que ao final da noite lhe deixa um recado escrito "Você obrigado Eu" e seu perfume, a vingança  acontece (totalmente sem explicação, como que por impulso desvairado), pois agora ele tem algo a perder.

O filme termina com despedidas, poucas palavras e silêncio. Como a vida.

Fica a mensagem da busca, uma busca que cada ser humano se propõe ao menos uma vez debaixo do sol.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

100 anos com Gonzaga


O sertão é nosso lar, repetimos sempre meu bravo amigo Fernando e eu. Lá temos raízes profundas: ele, sertanejo puro, matuto da roça que lutou até alcançar seu sonho de conduzir suas ovelhas; eu, filho de sertaneja e apaixonado pela terra de onde brotou meus ancestrais. Cresci ouvindo as histórias do povo da caatinga: de Lampião, Padre Cícero, da gente bonita e acolhedora das serras, das lendas e causos da minha vasta parentela. E a música faz parte disso tudo, tanto como manifestação de alegria quanto de nostalgia e saudosismo, para mim, de coisas que somente imagino.

O retirante, a feira, o homem valente, o amor grande nas simplicidades, a dor, a esperança. É na música de Seu Luiz Gonzaga que revivo essas imagens e quando me sinto um sertanejo. Encontro-me com a outra metade de mim, uma vez que nasci na beira do rio Mundaú. Reconheço a história dos meus avós na cantoria do Velho Lua, entro em sintonia com meus amigos de Água Branca e Mata Grande, alturas das Alagoas, vivo na catarse o que eles vivem na pele de sol a sol. Fico pasmo por detectar ainda o boiadeiro em seu caminho regular cuidador da riqueza pouca que tem ou muita dos coronéis. Fico doce comendo rapadura, mastigo devagar o queijo bom. E não deixo de me indignar que haja ainda tanta fome, tanta miséria, que o quadro continue o mesmo apesar das mudanças ocorridas nos últimos anos em que um nordestino devolveu a esperança àquele povo.

Luiz Gonzaga com sua voz e fole inconfundíveis me transportam para este paraíso na Terra, meu lugar de aconchego, onde renovo minhas energias para continuar remando.

Falar do grande artista que é Luiz Gonzaga é redundante. Ele já era pop quando isso nem existia. Ponto.

Dentre as histórias que minha mãe me contou há uma especial para esta data dos cem anos do Gozagão. É que minha voinha Valdeci certa feita brigou com Ciço Fumeiro para ir a Paulo Afonso-BA ver o show do sanfoneiro de Exu-PE. Ela queria chegar logo cedo, tipo de manhã para um show marcado para noite. Ela queria ficar bem perto do palco, bem perto do seu artista preferido. Imagine uma beata tietando! Ciço não teve como contradizê-la, a mulher era firme, e foram-se dançar forró.

Hoje, quando volto à mesma casa onde minha mãe, tias e primos cresceram, ainda sinto o cheiro de meus avós. Está lá a paisagem cantada por Luiz. Para onde eu for, basta um acorde de sanfona para me levar ao sertão, ou assobio despretensioso d'algum baião.

Luiz Gonzaga não morreu, se encantou.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Rio-Mar


O rio corre sempre para o mar, ainda que deságue em outros rios, ou que outros rios se encontrem nele, seu destino é se juntar ao sal, virar nuvem e virar rio novamente no mar. Até se formar esta simbiose, o rio se esquiva, ora engradece, ora se humilha pelas passagens esguias. Mas sempre chega ao mar. E o mar o recebe, pois são a mesma água, a mesma fonte de vida. Lá, o rio esquece que é rio e se torna mar, o mar dos navegantes, dos piratas, o mar de Fernando em Pessoa de Álvaro de Campos na sua Ode Marítima, o mar de nosso poeta maior, Camões, de todos Os Lusíadas, das algas marinhas que liberam o oxigênio, que separa os continentes, que é belo e feroz, o mar do menino filho de pescador, da menina praieira, do aventureiro, do boêmio, de quem passa, o mar onde se deitam a lua, o sol, as estrelas, o infinito. Para o rio todos voltam para ter sua porção de doçura.

Há um momento, porém,  em que ninguém sabe onde o mar, o céu e o rio começam ou terminam: quando chove.

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Foto: A paisagem mais bela que meus olhos puderam ver durante tanto tempo. Continuará a ser meu refúgio do mundo. Rio Mundaú, Branquinha-AL, antes da enchente de 18 de junho de 2010.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

As mãos de Irinéia



Irinéia era a menina que bulia no barro por curiosidade.

Cresceu, casou, veio uma penca de filhos e, após o primeiro casamento, encontrou Antonio, seu "veio" e aprendiz primogênito.

Não se contentava em fazer apenas panelas e cuidar da casa e dos filhos. A curiosidade a persegue por toda a vida, atiça-lhe a criatividade, inquieta suas mãos. Sutis, precisas, a moldar o barro sob o olhar carregado de história.

Antonio deixou de buscar o barro preto no campo verde para sentar tijolos (afinal os tempos mudaram...). O barro que ergueu tantos lares no Muquém e redondezas, agora servia a arte de Irinéia e, então, conhecemos uma artista filha do Quilombo dos Palmares.

Com as mãos já cansadas de toda uma vida, mas ainda firmes, Dona Irinéia retrata o mundo, lendo e relendo-o, transformando o barro informe.

Sua técnica é simples. Seus instrumentos, rudimentares e improvisados. A arte, no entanto, evoca ancestralidade, uma expressão livre. Ora bem detalhadas, ora lisas e suavemente arredondadas (seu traço peculiar). Porém, sempre equilibradas e em consonância com a medida do seu olhar e toque.

Criando outro mundo de barro com suas mãos de menina curiosa.

10 de novembro de 2012

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Sol, cerrado e povo

Meu amigo Fernando tinha um sonho: ser padre. E, como bom sertanejo, lutou, enfrentou suas limitações, superou-as. Vieram as perseguições externas, superou-as igualmente. Hoje, padre, toma conta de pessoas num lugar onde ainda é um tanto problemático ter fé, onde apesar de toda a riqueza que a soja gera, o povo não tem muitas opções de emprego e renda. Em Alagoas temos o mal da cana e no Tocantins, o da soja. Aqui quase não resta mata atlântica, lá o cerrado continuamente se esvai com as constantes queimadas. É um daqueles lugares esquecidos, que só lembramos da existência quando algo muito ruim acontece. Em ambos o povo resiste, se reinventa e migra para onde há esperança de uma vida melhor.

Sol, cerrado e povo.

Nestas fotos, que colhi acompanhando meu amigo pelas roças em que rezou missa, na zona rural do município de Aliança do Tocantins (e Porto Nacional), tentei captar (falo como se eu fosse um fotógrafo, ai ai) a alegria que Fernando transmite às pessoas com suas tiradas inusitadas e carisma, bem como os momentos solenes do culto católico. É também uma forma singela de homenagear o amigo.

As fotos seguem sem manipulação, apenas reduzi de tamanho para subi-las mais rápido.

Para onde se vá, bicicletas. 
Venera.
  

Festa de Nossa Senhora Aparecida. 
Leilão é algo comum em Aliança.


Fé na roça.

Terço.

Moça bonita.

Sorriso amarelo.

Reza.

Observa.

Resiste.

Sua.

Ouve.
 
Ex-pagão.

Sorriso falho.
 
Corpo e sangue.

Sorriso falho #2.
Coceirinha na orelha.


Hora do rango.

Segura.

Cruz.
 
Missa num assentamento.

Solenidade.

Improviso.

Improviso #2.

Luz para todos.

Olha.

Introspecção.

Solenidade #2.

Pai nosso...
Padre do povo.


Meninos e meninas.
Sorriso tímido.
 

Sorrisos.

Olhar desprentensioso.

Leilão na roça.
Galego.



Orla do rio Tocantins em Porto Nacional.

Praça do Mirante, com a catedral ao fundo. (Porto Nacional)

Orla do rio Tocantins em Porto Nacional #2.
Catedral da Diocese de Porto Nacional-TO.

Catedral da Diocese de Porto Nacional-TO. #2.
Catedral da Diocese de Porto Nacional-TO
no quadro em casa do Bispo Romualdo.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Do outro lado da festa

Agonia e Êxtase é o título de um filme clássico que conta a história de Michelangelo, o gênio renascentista, quando este assumiu a "simples" tarefa de pintar os afrescos da Capela Sistina. Agonia foi o que senti durante os preparativos do Festival Linha de Produção, primeiro evento de música que produzi ao lado dos companheiros do Coletivo A Fábrica: Zema, Thiago, Wenndell e Bruno. E êxtase ao soar o primeiro acorde da primeira banda a se apresentar no palco montado no pátio da escola onde passei boa parte da minha adolescência.

Produzir um evento de rock em União dos Palmares e região ainda causa muito estranhamento por conta da imagem deturpada que associam ao estilo musical. Poucas pessoas se arriscam a investir num projeto tão ambicioso e alternativo às opções de entretenimento corriqueiras. Com muito esforço e uma pitada de sorte conseguimos o patrocínio e o apoio necessários à realização do 1° FLP. Depois veio toda a logística: hospedagem, alimentação, material gráfico, transporte etc.

Ao longo de nossas reuniões jamais perdemos o bom humor e até o refinamos. Era com altas risadas diante das agonias que vislumbrávamos o êxtase. Deu tudo certo, é a palavra final do grupo. Era com muito refrigerante e salgados, também, que almoçávamos. Pesadelos viraram piada e não foram poucos, da minha parte, na reta final. Coisa de operário de primeira obra.

Circunstâncias irremediáveis nos forçaram a cancelar algumas atividades do projeto inicial, outras, de última hora, não diminuíram o tamanho da festa, que não deixou a desejar, dizem aqueles que estiveram lá e registraram o momento. Os comentários nas redes sociais foram gratificantes. E o apoio dos  nossos parceiros do coletivo Popfuzz, com todo seu know how, foi crucial.

Quase dois dias após a festa ainda estamos cansados, mas satisfeitos e já pensando nos ajustes para a próxima edição do FLP. Porque acreditamos no potencial de nossos artistas, nadamos contra a maré do mais do mesmo e apostamos alto na cultura alternativa como um meio de intervenção social, portanto política, para romper paradigmas e construir uma via de liberdade em meio às mazelas.

Aqui registro toda a nossa gratidão às bandas, aos amigos e ao público que compareceram. E aos nossos patrocinadores e apoiadores do projeto. Sem vocês não haveria festa nem beleza.

As mãos vão ficando calejadas, mesmo com luvas, a espinha fortificada de tanto envergar e o corpo se acostuma a ferver sob o uniforme. As engrenagens continuarão a girar, pois vapor não falta.

Festival Linha de Produção: agonia e êxtase. Expediente encerrado.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Perguntas

...mas, se não tivermos um ideal?

Se não sonharmos nem imaginarmos como o mundo que queremos se realizará?

Sonharão por nós aqueles que dominam o mundo?

Eles conhecem nossos anseios?

Onde enterramos nossos sonhos?

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Setecentos e trinta depois


O acúmulo de dias, noites e catástrofes só nos faz mais de nós.
A reconstrução interior é ainda mais árdua.
As formas não querem se encaixar, apesar da necessidade
Setecentos e trinta e tantas dores depois...

José Minervino Neto
União dos Palmares via Branquinha
18 a 20 de junho de 2012

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Imagens descoloridas



Ontem, 20/06*, foi o Dia Nacional do Cinema, o que não quer dizer muita coisa, convenhamos. Com raras exceções, poucos filmes brasileiros alcançaram um elevado grau de primor estético. Por essas bandas sempre faltou estrutura, de equipamentos à mentes, e apoio financeiro para desenvolver a indústria cinematográfica nacional.

Com exceção, talvez, do movimento Cinema Novo, que projetou a produção brasielira para fora, somente de uns quinze anos para cá o fator estético realmente ficou em primeiro plano. Boas narrativas, bons atores e aspectos técnicos importantíssimos da composição de um filme, como fotografia e trilha sonora, foram usados com maior critério. Porque não basta ter apenas "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça" para se produzir um BOM filme. 

Cinema é Arte, que, por sua vez, requer a expressão do belo, mesmo vindo carregado de cores não muito alegres. Algo distante das hilárias pornochanchadas e dos filmes-denúncias, herméticos, marcantes no cenário mais recente, ou das comédias clichês repletas de atrativos "globais". Próximo, porém, do sentimento universal diante de uma particularidade.

Ranulpho (João Miguel) e Johann (Peter Ketnath)
em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005).
Para mim até o momento, oriundo de solo brasileiro, somente Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), dirigido por Marcelo Gomes e protagonizado pelo perfeito João Miguel e o alemão Peter Ketnath, logrou excelência, ao contar uma história ambientada no sertão, contudo permeada por uma sensibilidade forte, catártica, tocante a qualquer cidadão do mundo.

Há, claro, outras boas películas, jamais esqueceria de Central do Brasil (1998), que tem lugar cativo no meu ideário, Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite 2 - o inimigo agora é outro (2010). Outros poderão ser adicionados à lista à medida que o acervo aumentar, por enquanto cito apenas estes.

Outro problema do cinema nacional é o público viciado nas fórmulas hollywoodianas, que lota salas de filmes como o péssimo Se eu fosse você (2005) - nada contra as boas comédias - e desdenha de outros mais consistentes, como o próprio Cinema..., também de 2005. Nossos cineastas precisam ser estimulados também pelos consumidores de cinema para continuarem a fazer bons filmes. E não, isso não quer dizer que eles ganharão um Oscar, essa premiação cada ano mais fisiológica, mas se vier que seja para um filme realmente digno.

O salto qualitativo tão ensaiado por décadas já foi dado, a tecnologia está acessível, há leis de incentivo e uma safra de atores (João Miguel, Wagner Moura, Alice Braga, Drica Moraes, sem contar os veteranos ainda na ativa) e diretores (Walter Salles, Fernando Meirelles, Marcelo Gomes, José Padilha) como não se via desde muito tempo. Tem-se todos os elementos para fazer cinema no Brasil e fazer bem-feito. 

É hora de evoluir, sair da casca e construir um cinema brasileiro deveras artístico e universalista.

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Há um equívoco quanto a data em que se comemora o Dia Nacional do Cinema, na verdade, é o dia 19 e não 20/06, como está acima.